quarta-feira, 2 de março de 2011

Uma tese é uma tese...

Achei um email na minha caixa de entrada. Foi minha amiga Janeisa quem mandou. Um ótimo texto, que vale a pena ser lido!



Uma Tese é uma Tese

Sabe tese, de faculdade? Aquela que defendem? Com unhas e dentes? É dessa tese que eu estou falando. Você deve conhecer pelo menos uma pessoa que já defendeu uma tese. Ou esteja defendendo. Sim, uma tese é defendida. Ela é feita para ser atacada pela banca, que são aquelas pessoas que gostam de botar banca.
As teses são todas maravilhosas. Em tese. Você acompanha uma pessoa meses, anos, séculos, defendendo uma tese. Palpitantes assuntos. Tem tese que não acaba nunca, que acompanha o elemento para a velhice. Tem até teses pós-morte.
O mais interessante na tese é que, quando nos contam, são maravilhosas, intrigantes. A gente fica curiosa, acompanha o sofrimento do autor, anos a fio. Aí ele publica, te dá uma cópia e é sempre – sempre – uma decepção. Em tese. Impossível ler uma tese de cabo a rabo.
São chatíssimas. É uma pena que essas teses sejam escritas apenas para o julgamento da banca circunspecta, sisuda e compenetrada em si mesma. E nós?
Sim, porque os assuntos, já disse, são maravilhosos, cativantes, as pessoas são inteligentíssimas. Temas do arco-da-velha. Mas toda tese fica no rodapé da história. Pra que tanto sic e tanto apud? Sic me lembra o Pasquim e apud não parece candidato do PFL para vereador? Apud Neto.
Escrever uma tese é quase um voto de pobreza que a pessoa se autodecreta. O mundo pára, o dinheiro entra apertado, os filhos são abandonados, o marido que se vire. Estou acabando a tese. Essa frase significa que a pessoa vai sair do mundo. Não por alguns dias, mas anos. Tem gente que nunca mais volta.
E, depois de terminada a tese, tem a revisão da tese, depois tem a defesa da tese. E, depois da defesa, tem a publicação. E, é claro, intelectual que se preze, logo em seguida embarca noutra tese. São os profissionais, em tese. O pior é quando convidam a gente para assistir à defesa. Meu Deus, que sono. Não em tese, na prática mesmo.
Orientados e orientandos (que nomes atuais!) são unânimes em afirmar que toda tese tem de ser – tem de ser! – daquele jeito. É pra não entender, mesmo, assumem essa confissão. Tem de ser formatada assim. Que na Sorbonne é assim, que em Coimbra também. Na Sorbonne, desde 1257. Em Coimbra, mais moderna, desde 1290.
Em tese (e na prática) são 700 anos de muita tese e pouca prática.
Acho que, nas teses, tinha de ter uma norma em que, além da tese, o elemento teria de fazer também uma tesão (tese grande). Ou seja, uma versão para nós, pobres teóricos ignorantes que não votamos no Apud Neto.
Ou seja, o elemento (ou a elementa) passa a vida a estudar um assunto que nos interessa e nada. Pra quê? Pra virar mestre, doutor? E daí? Se ele estudou tanto aquilo, acho impossível que ele não queira que a gente saiba a que conclusões chegou. Mas jamais saberemos onde fica o bicho da goiaba quando não é tempo de goiaba. No bolso do Apud Neto?
Tem gente que vai para os Estados Unidos, para a Europa, para terminar a tese. Vão lá nas fontes. Descobrem maravilhas. E a gente não fica sabendo de nada. Só aqueles sisudos da banca. E o cara dá logo um dez com louvor. Louvor para quem? Que exaltação, que encômio é isso?
E tem mais: as bolsas para os que defendem as teses são uma pobreza.
Tem viagens, compra de livros caros, horas na internet da vida, separações, pensão para os filhos que a mulher levou embora. É, defender uma tese é mesmo um voto de pobreza, já dizia São Francisco de Assis. Em tese.
Tenho um casal de amigos que uns dez anos prepara suas teses. Cada um, uma. Dia desses a filha, de dez anos, no café da manhã, ameaçou:
- Não vou mais estudar! Não vou mais na escola!
Os dois pararam – momentaneamente – de pensar nas teses.
- O quê? Pirou?
- Quero estudar mais, não. Olha vocês dois. Não fazem mais nada na vida. É só a tese, a tese, a tese. Não pode comprar bicicleta por causa da tese. A gente não pode ir para a praia por causa da tese. Tudo é pra quando acabar a tese. Até trocar o pano do sofá. Se eu estudar vou acabar numa tese. Quero estudar mais, não. Não me deixam nem mexer mais no computador. Vocês acham mesmo que eu vou deletar a tese de vocês?
Pensando bem, até que não é uma má idéia!
Quando é que alguém vai ter a prática idéia de escrever uma tese sobre a tese? Ou uma sobre a vida nos rodapés da história?
Acho que seria uma tesão.


Mário Prata in Cem Melhores Crônicas
originalmente publicada em 7/1998 – O Estado de S. Paulo

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Estresse Neonatal e Avaliação de Riscos

Olá pessoal, olha eu aqui de novo (antes tarde do que nunca)...

Nesse tempo que estive longe das atualizações do blog aproveitei para colocar em dia algumas leituras. Andei lendo alguns livros de literatura mesmo, só para sair da rotina dos textos acadêmicos e técnicos. Andava de saco cheio. Todavia, não pude me distanciar de todo da leitura de artigos científicos.

Bom, o que eu queria comentar com vocês hoje é um texto de 2003 do Profº Aldo Lucion, professor do Programa de Pós Graduação em Fisiologia e Neurociência da UFRGS.  O artigo, intitulado Neonatal handling reduces the number of cells in the locus coeruleus of rats, é interessantíssimo. De um modo geral, o autor relata que a manipulação dos ratos é responsável por um estresse neonatal fortíssimo e interfere na formação e maturação do locus coeruleus desses animais. Mas como é isso? Quais as consequencias?

Explico: a manipulação neonatal, procedimento que o profº Aldo utiliza, consiste em separar as mães dos filhotes nos primeiros 10 dias após nascimento dessas crias. Nessa separação, o pesquisador pega os filhotes nas mãos e faz uma espécie de carinho durante 1 minutos por dia (nos 10 primeiros dias de vida das crias). Após essa manipulação diária, a mãe volta para o convívio dos filhotes até a próxima separação, no próximo dia. Nas avaliações histológicas do cérebro desses filhotes, pode-se perceber uma diminuição de até 50% no numero de neurônios em algumas partes do cérebro, em especial ao locus coeruleus (LC). O LC é responsável por muitas respostas simpáticas durante o estresse e responde aumentando a secreção de norepinefrina, a qual altera a função cognitiva (por meio do córtex pré-frontal), aumenta a motivação através do núcleo accumbens), ativa o eixo hipotálamo-hipófise-adrenal e aumenta a descarga simpática (inibindo o sistema parasimpático) via tronco cerebral. em específico ao eixo hipotálamao-hipófise-adrenal, a norepinefrina estimulará o hormônio liberador de corticotropina no hipotálamo, induzindo a liberação do hormônio adenocorticotrópico (ACTH) na hipófise anterior e subsequente síntese de cortisol na glândula adrenal.

Em análises de comportamento dessas crias manipuladas pelo pesquisador (nessa fase do estudo as crias estavam com 90 dias), o que mais me chamou atenção foi o comportamento exploratório desses animais. em comparação aos animais não manipulados, os filhotes do grupo experimental apresentava maior comportamento exploratório, o que demonstra uma menor capacidade de avaliação de risco, uma vez que neste teste, um predador (colocado em uma espécie de gaiola) era colocado no mesmo ambiente que o rato.

Para quem se interessar pelo tema, aí vai um link interessante: http://en.wikipedia.org/wiki/Locus_coeruleus

Um abraço e até a próxima.

Roges

domingo, 15 de agosto de 2010

Um tempo para outras tarefas

Pessoal!
Vou ficar alguns dias afastado dos post aqui no blog para realizar algumas tarefas que por ora demandam muito tempo.
Não que o blog consuma muito o meu "precioso" tempo, mas estou em fase de criação de um texto e preciso me concentrar nesse novo trabalho.
A todos, um fraterno abraço e até breve.
Roges

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Reforma Psiquiátrica no Brasil - Parte 2

O Processo de Desinstitucionalização
Pessoal do céu... eu tinha falado na última semana (data do último post) que o assunto era longo e por isso deveria ser postado em partes.. Bom, espero que tenham preparado um bom café, um chimarrão, a pipoca e um puff para os pés, porque o texto é muito grande (isso que fiz alguns cortes e edições).
Com relação à política de desistitucionalização e o processo de redução de leitos em hospitais psiquiátricos de pessoas com longo histórico de internação passa a tornar-se política pública no Brasil a partir dos anos 90, e ganha grande impulso em 2002 com uma série de normatizações do Ministério da Saúde, que instituem mecanismos claros, eficazes e seguros para a redução de leitos psiquiátricos a partir dos macro-hospitais.
Para avaliar o ritmo da redução de leitos em todo o Brasil, no entanto, é preciso considerar o processo histórico de implantação dos hospitais psiquiátricos nos estados,
assim como a penetração das diretrizes da Reforma Psiquiátrica em cada região brasileira, uma vez que o processo de desinstitucionalização pressupõe transformações culturais e subjetivas na sociedade e depende sempre da pactuação das três esferas de governo (federal, estadual e municipal).
Assim, a distribuição dos atuais 42.076 leitos psiquiátricos no Brasil ainda expressa o processo histórico de implementação nos estados de um modelo hospitalocêntrico de assistência em saúde mental. Esta oferta hospitalar, em sua maioria de leitos privados ( 58% dos leitos em psiquiatria), concentrou-se historicamente nos centros de maior desenvolvimento econômico do país, deixando vastas regiões carentes de qualquer recurso de assistência em saúde mental. Assim, configuram-se como estados de grande tradição hospitalar e alta concentração de leitos de psiquiatria, os estados da Bahia e Pernambuco ( na Região Nordeste do Brasil), Goiás ( no Centro-
Oeste ), Paraná ( na região Sul ) e São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais ( na região Sudeste ). A região Sudeste, como grande centro histórico de desenvolvimento do país, sedia cerca de 60% dos leitos de psiquiatria no país.
Nos últimos três anos, o processo de desinstitucionalização de pessoas com longo histórico de internação psiquiátrica avançou significativamente, sobretudo através da instituição pelo Ministério da Saúde de mecanismos seguros para a redução de leitos no país e a expansão de serviços substitutivos aos hospital psiquiátrico. O Programa Nacional de Avaliação do Sistema Hospitalar/Psiquiatria (PNASH/Psiquiatria), o Programa Anual de Reestruturação da Assistência Hospitalar Psiquiátrica no SUS (PRH), assim como a instituição do Programa de Volta para Casa e a expansão de serviços como os Centros de Atenção Psicossocial e as Residências Terapêuticas,
vem permitindo a redução de milhares de leitos psiquiátricos no país e o fechamento de vários hospitais psiquiátricos.
Embora em ritmos diferenciados, a redução do número de leitos psiquiátricos vem se efetivando em todos os estados brasileiros, sendo muitas vezes este processo o desencadeador do processo de Reforma. Entre os anos de 2003 e 2005 foram reduzidos 6227 leitos.

A avaliação anual dos hospitais e seu impacto na reforma

Entre os instrumentos de gestão que permitem as reduções e fechamentos de leitos de hospitais psiquiátricos de forma gradual, pactuada e planejada, está o Programa Nacional de Avaliação do Sistema Hospitalar/Psiquiatria (PNASH/Psiquiatria), instituído em 2002, por normatização do Ministério da Saúde. Essencialmente um instrumento de avaliação, o PNASH/Psiquiatria permite aos gestores um diagnóstico da qualidade da assistência dos hospitais psiquiátricos conveniados e públicos existentes em sua rede de saúde, ao mesmo tempo que indica aos prestadores critérios para uma assistência psiquiátrica hospitalar compatível com as normas do SUS, e descredencia aqueles hospitais sem qualquer qualidade na assistência prestada a sua população adscrita.
Trata-se da instituição, no Brasil, do primeiro processo avaliativo sistemático,
anual, dos hospitais psiquiátricos. Se a reorientação do modelo de atenção em saúde mental no Brasil é recente, mais recente ainda são seus processos de avaliação.
É importante ressaltar que a tradição de controle e avaliação anterior ao PNASH-Psiquiatria ancorava-se em dois mecanismos: as supervisões hospitalares, realizadas por supervisores do SUS, de alcance limitado, e as fiscalizações ou auditorias que atendiam a denúncias de mau funcionamento das unidades. É a partir da instituição do PNASH/Psiquiatria que o processo de avaliação da rede hospitalar psiquiátrica pertencente ao Sistema Único de Saúde passa a ser sistemático e anual, e realizado por técnicos de três campos complementares: o técnico-clínico, a vigilância sanitária e o controle normativo. Este instrumento gera uma pontuação que, cruzada com o número de leitos do hospital, permite classificar os hospitais psiquiátricos em quatro grupos diferenciados: aqueles de boa qualidade de assistência; os de qualidade suficiente; aqueles que precisam de adequações e devem sofrer revistoria; e aqueles de baixa qualidade, encaminhados para o descredenciamento pelo Ministério da Saúde, com os cuidados necessários para evitar desassistência à população.
A política de desinstitucionalização teve um forte impulso com a implantação do Programa Nacional de Avaliação dos Serviços Hospitalares – PNASH/Psiquiatria. O PNASH vem conseguindo nos últimos três anos vistoriar a totalidade dos hospitais psiquiátricos do país, leitos de unidades psiquiátricas em hospital geral, permitindo que um grande número de leitos inadequados às exigências mínimas de qualidade assistencial e respeito aos direitos humanos sejam retirados do sistema, sem acarretar desassistência para a população.
O processo demonstrou ser um dispositivo fundamental para a indução e efetivação da política de redução de leitos psiquiátricos e melhoria da qualidade da assistência hospitalar em psiquiatria. Em muitos estados e municípios, o PNASH/Psiquiatria exerceu a função de desencadeador da reorganização da rede de saúde mental, diante da situação de fechamento de leitos psiquiátricos e da conseqüente expansão da rede extra-hospitalar. Em permanente aprimoramento, o PNASH/Psiquiatria ainda exerce um impacto importante no avanço da Reforma Psiquiátrica em municípios e estados com grande tradição hospitalar.

As residências terapêuticas

A desinstitucionalização e a efetiva reintegração das pessoas com transtornos mentais graves e persistentes na comunidade são tarefas às quais o SUS vem se dedicando com especial empenho nos últimos anos. A implementação e o financiamento de Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT) surgem neste contexto como componentes decisivos da política de saúde mental do Ministério da Saúde para a concretização das diretrizes de superação do modelo de atenção centrado no hospital psiquiátrico. Assim, os Serviços Residenciais Terapêuticos, residências terapêuticas ou simplesmente moradias, são casas localizadas no espaço urbano, constituídas para responder às necessidades de moradia de pessoas portadoras de transtornos mentais graves, egressas de hospitais
psiquiátricos ou não.
Embora as residências terapêuticas se configurem como equipamentos da saúde, estas casas, implantadas na cidade, devem ser capazes em primeiro lugar de garantir o direito à moradia das pessoas egressas de hospitais psiquiátricos e de auxiliar o morador em seu processo – às vezes difícil – de reintegração na comunidade. Os direitos de morar e de circular nos espaços da cidade e da comunidade são, de fato, os mais fundamentais direitos que se reconstituem com a implantação nos municípios de Serviços Residenciais Terapêuticos. Sendo residências, cada casa deve ser considerada como única, devendo respeitar as necessidades, gostos, hábitos e dinâmica de seus moradores.
Uma Residência Terapêutica deve acolher, no máximo, oito moradores. De forma geral, um cuidador é designado para apoiar os moradores nas tarefas, dilemas e conflitos cotidianos do morar, do co-habitar e do circular na cidade, em busca da  autonomia do usuário. De fato, a inserção de um usuário em um SRT é o início de longo processo de reabilitação que deverá buscar a progressiva inclusão social do morador. Cada residência deve estar referenciada a um Centro de Atenção Psicossocial e operar junto à rede de atenção à saúde mental dentro da lógica do território.
Especialmente importantes nos municípios-sede de hospitais psiquiátricos, onde o processo de desinstitucionalização de pessoas com transtornos mentais está em curso, as residências são também dispositivos que podem acolher pessoas que em algum momento necessitam de outra solução de moradia. O processo de implantação e expansão destes serviços é recente no Brasil. Nos últimos anos, o complexo esforço de implantação das residências e de outros dispositivos substitutivos ao hospital psiquiátrico vem ganhando impulso nos municípios, exigindo dos gestores do SUS uma permanente e produtiva articulação com a comunidade, a vizinhança e outros cenários e pessoas do território.
De fato, é fundamental a condução de um processo responsável de trabalho terapêutico com as pessoas que estão saindo do hospital psiquiátrico, o respeito por cada caso, e ao ritmo de readaptação de cada pessoa à vida em sociedade. Desta forma, a expansão destes serviços, embora permanente, tem ritmo próprio e acompanha, de forma geral, o processo de desativação de leitos psiquiátricos.
A rede de residências terapêuticas conta hoje com 357 serviços em  funcionamento, com aproximadamente 2850 moradores. A expansão dos Centros de Atenção Psicossocial, o desativamento de leitos psiquiátricos e, em especial, a instituição pelo Ministério da Saúde de incentivo financeiro, em 2004, para a compra de equipamentos para estes serviços, são alguns dos componentes para a expansão deste rede, que contava em 2002 com apenas 85 residências em todo o país. Esta rede deverá experimentar ainda nos próximos anos grande expansão. Estimativas do Ministério da Saúde indicam que cerca de 12.000 pessoas poderão se beneficiar dos Serviços esidenciais Terapêuticos.

O Programa de Volta para Casa

O Programa de Volta para Casa é um dos instrumentos mais efetivos para a reintegração
social das pessoas com longo histórico de hospitalização. Trata-se de uma das estratégias mais potencializadoras da emancipação de pessoas com transtornos mentais e dos processos de desinstitucionalização e redução de leitos nos estados e municípios. Criado pela lei federal 10.708, encaminhada pelo presidente Luís Inácio Lula da Silva ao Congresso, votada e sancionada em 2003, o Programa é a concretização de uma reivindicação histórica do movimento da Reforma Psiquiátrica Brasileira, tendo sido formulado como proposta já à época da II Conferência Nacional de Saúde Mental, em 1992.
O objetivo do Programa é contribuir efetivamente para o processo de inserção social das pessoas com longa história de internações em hospitais psiquiátricos, através do pagamento mensal de um auxílio-reabilitação, no valor de R$240,00 (duzentos e quarenta reais, aproximadamente 110 dólares) aos seus beneficiários . Para receber o auxílio-reabilitação do Programa De Volta para Casa, a pessoa deve ser egressa de Hospital Psiquiátrico ou de Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, e ter indicação para inclusão em programa municipal de reintegração social.
O Programa possibilita a ampliação da rede de relações dos usuários, assegura o bem estar global da pessoa e estimula o exercício pleno dos direitos civis, políticos e de cidadania, uma vez que prevê o pagamento do auxílio-reabilitação diretamente ao beneficiário, através de convênio entre o Ministério da Saúde e a Caixa Econômica Federal. Assim, cada beneficiário do Programa recebe um cartão magnético, com o qual pode sacar e movimentar mensalmente estes recursos. O município de residência do beneficiário deve, para habilitar-se ao Programa, ter assegurada uma estratégia de acompanhamento dos beneficiários e uma rede de atenção à saúde mental capaz de dar
uma resposta efetiva às demandas de saúde mental. A cada ano o benefício pode ser renovado, caso o beneficiário e a equipe de saúde que o acompanha entendam ser esta uma estratégia ainda necessária para o processo de reabilitação.
Trata-se de um dos principais instrumentos no processo de reabilitação psicossocial, segundo a literatura mundial no campo da Reforma Psiquiátrica. Seus efeitos no cotidiano das pessoas egressas de hospitais psiquiátricos são imediatos, na medida em que se realiza uma intervenção significativa no poder de contratualidade social dos beneficiários, potencializando sua emancipação e autonomia. A implementação do Programa, no entanto, não se dá sem dificuldades.
Além do esperado desafio da mudança efetiva do modelo de atenção à saúde mental nos estados e municípios, o Programa de Volta para Casa enfrenta uma situação paradigmática, produzida por um longo processo de exclusão social. A grande maioria dos potenciais beneficiários, sendo egressos de longas internações em hospitais psiquiátricos, não possuem a documentação pessoal mínima para o cadastramento no Programa. Muitos não possuem certidão de nascimento ou carteira de identidade O longo e secular processo de exclusão e isolamento dessas pessoas, além dos modos de funcionamento típicos das instituições totais, implicam muitas vezes na ausência de
instrumentos mínimos para o exercício da cidadania.
Este é ainda um desafio para a consolidação do Programa, que vem sendo enfrentado através da parceria entre o Ministério da Saúde, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal e a Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, para restituir o direito fundamental de identificação e garantir o direito destas pessoas ao auxílio-reabilitação do Programa de Volta para Casa. Desta forma, verdadeiros “mutirões da cidadania” vêm se estruturando nos municípios para garantir a identificação tardia destas pessoas, num processo fundamental de inclusão social e garantia dos direitos fundamentais das pessoas com
transtornos mentais, desafio primeiro da Reforma Psiquiátrica Brasileira.

A estratégia de redução progressiva a partir dos hospitais de grande porte

Aprofundando as estratégias já estabelecidas para a redução de leitos em hospitais psiquiátricos e para o incremento dos serviços extra-hospitalares, o Ministério da Saúde aprova em 2004 o Programa Anual de Reestruturação da Assistência Hospitalar no SUS (PRH). A principal estratégia do Programa é promover a redução progressiva e pactuada de leitos a partir dos macrohospitais (acima de 600 leitos, muitas vezes hospitais-cidade, com mais de mil leitos) e hospitais de grande porte (com 240 a 600 leitos psiquiátricos). Assim, são componentes fundamentais do programa a redução do peso assistencial dos hospitais de maior porte, e a pactuação entre os gestores do SUS – os hospitais e as instâncias de controle social – da redução planejada de leitos, evitando a desassistência. Desta forma, procura-se conduzir o processo de mudança do modelo assistencial de modo a garantir uma transição segura, onde a redução dos leitos hospitalares possa ser planificada e acompanhada da construção concomitante de alternativas de atenção no modelo comunitário.
Para tanto, são definidos no Programa os limites máximos e mínimos de redução anual de leitos para cada classe de hospitais (definidas pelo número de leitos existentes, contratados pelo SUS). Assim, todos os hospitais com mais de 200 leitos devem reduzir no mínimo, a cada ano, 40 leitos. Os hospitais entre 320 e 440 leitos podem chegar a reduzir 80 leitos ao ano (mínimo: 40), e os hospitais com mais de 440 leitos podem chegar a reduzir, no máximo, 120 leitos ao ano.
Desta forma, busca-se a redução progressiva do porte hospitalar, de modo a situarem-se os hospitais, ao longo do tempo, em classes de menor porte (idealmente, até 160 leitos). Ao mesmo tempo, garante-se que as reduções de leitos se efetivem de forma planejada, de modo a não provocar desassistência nas regiões onde o hospital psiquiátrico ainda tem grande peso na assistência às pessoas com transtornos mentais. Este processo, com ritmo pactuado entre os gestores do município e do estado, hospitais e controle social, deve incluir o aumento progressivo dos equipamentos e das ações para a desinstitucionalização, tais como CAPS, Residências Terapêuticas, Centros de Convivência e a habilitação do município no Programa de Volta para Casa.
Na mesma direção estratégica, o Programa recompõe as diárias hospitalares em psiquiatria. Assim, a partir do Programa, passam a vigorar diárias hospitalares compostas e diferenciadas para os hospitais, levando-se em conta o seu porte (classe), a qualidade do atendimento avaliada anualmente pelo PNASH/Psiquiatria e a redução de leitos efetivada. Desta forma, recebem incentivos financeiros, através de novos valores de diárias hospitalares, aqueles hospitais que efetivam a redução de leitos, reduzindo o seu porte, e qualificam o atendimento prestado, verificado pelo PNASH/Psiquiatria.
Assim, passam a ser melhor remunerados pelo SUS todos os hospitais que reduzem leitos e que melhoram a qualidade de atendimento, aferida pelo  PNASH/Psiquiatria. A partir do Programa, a recomposição das diárias hospitalares passa a ser uma ferramenta da política de redução racional dos leitos e qualificação do atendimento em psiquiatria no SUS.
O Programa também busca garantir que os recursos que deixem de ser utilizados nos hospitais, com a progressiva redução de leitos, permaneçam no campo das ações de saúde mental e sejam direcionados para os equipamentos da Reforma Psiquiátrica. Desta forma, busca-se garantir o incremento da ações territoriais e comunitárias de saúde mental, como os Centros de Atenção Psicossocial, Serviços Residenciais Terapêuticos, ambulatórios, atenção básica e outros.
A condução deste processo, crucial para a consolidação da Reforma Psiquiátrica Brasileira, exige negociações e pactuações sucessivas entre gestores (municipais, estaduais e federal), prestadores de serviços e controle social. O cenário privilegiado desse denso progresso de negociação são as “comissões intergestores” bipartite (municípios e estados) e tripartite (Ministério da Saúde, estados e municípios) e os Conselhos Comunitários de Saúde. Na verdade, tais pactuações devem conduzir de forma responsável o processo de desinstitucionalização das pessoas com transtornos mentais longamente internadas, e não somente a redução programada de leitos.
Assim, para cada redução significativa de porte de um hospital, deve haver, além do incremento da rede de atenção local à saúde mental, um trabalho delicado de reinserção social das pessoas com longa história de internação, e a implementação de ações específicas para esta clientela. Neste contexto, a implantação de Residências Terapêuticas e adesão do município ao Programa De Volta para Casa têm se revelado como estratégias importantes para a efetivação do processo de desinstitucionalização.
O Programa Anual de Reestruturação da Assistência Hospitalar Psiquiátrica no SUS nasce como um mecanismo de gestão do processo de redução de leitos psiquiátricos no país.
Aliado ao PNASH/Psiquiatria, este mecanismo reafirma a diretriz política do Ministério da Saúde na direção da redução progressiva de leitos psiquiátricos e pela melhor qualidade da assistência prestada às pessoas com transtornos mentais. De janeiro de 2004 a maio de 2005, o Programa desativou cerca de 2000 leitos. O Ministério da Saúde espera ter reduzido, até o final de 2006, 3.000 leitos em hospitais psiquiátricos de grande porte.

Manicômios Judiciários: um desafio para a Reforma

A Reforma psiquiátrica brasileira há muito discute o mandato social da psiquiatria e modifica com responsabilidade a prática asilar. É relativamente recente, no entanto, a discussão do manicômio judiciário, duplo espaço de exclusão e violência. Estima-se que 4.000 cidadãos brasileiros estejam hoje internados compulsoriamente nos 19 Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico ou Manicômios Judiciários em funcionamento no país. Estes hospitais, não sendo geridos pelo Sistema Único de Saúde, mas por órgãos da Justiça, não estão submetidos às normas gerais de funcionamento do SUS, ao PNASH/Psiquiatria (com única exceção dos Hospitais de
Custódia do Rio de Janeiro), ou ao Programa Anual de Reestruturação da Assistência Hospitalar Psiquiátrica. São freqüentes as denúncias de maus tratos e os óbitos nestes estabelecimentos.
No ordenamento jurídico brasileiro, as pessoas com transtornos mentais que cometem crimes são consideradas inimputáveis, isto é, isentas de pena. Estas pessoas são submetidas, no entanto, à medida de segurança, espécie de tratamento compulsório, cuja principal conseqüência é a segregação perpétua ou por longo período, através da internação, da pessoa acometida de transtornos mentais que cometeu um crime ou uma infração. A publicação da lei 10.216, assim como as resoluções da III Conferência Nacional de Saúde Mental, vêm fomentando, no entanto, de forma inequívoca, a mudança das práticas na assistência ao louco infrator.
O exame crítico e intersetorial dos conceitos de inimputabilidade, medida de segurança e periculosidade, e a busca da superação do modelo de tratamento/custódia, através da articulação entre os atores da saúde e justiça são componentes desta mudança. O Ministério da Saúde desde então vem apoiando experiências interinstitucionais extremamente bem sucedidas, que buscam tratar o louco infrator fora do manicômio judiciário, na rede SUS extra-hospitalar de atenção à saúde mental, especialmente nos Centros de Atenção Psicossocial.
Supera-se, nestas experiências, a cessação de periculosidade como critério para a
desinstitucionalização dos pacientes, e a rede extra-hospitalar de saúde mental, com seus dispositivos como os CAPS, residências terapêuticas, ambulatórios e Centros de convivência, passa a ser convocada para oferecer tratamento a estes cidadãos, antes excluídos da rede SUS. Este processo, ainda em curso, não se dá sem dificuldades. A construção de novas práticas para um segmento historicamente situado à margem, inclusive do Sistema de Saúde, encontra resistência na rede de atenção extra-hospitalar de saúde mental, na rede SUS em geral, nas comunidades de origem dos pacientes e nos órgãos de justiça, que, não raro, sugerem a reinternação de pacientes em manicômios judiciários mesmo na ausência de novo delito.
Desta forma, muito embora o processo de desinstitucionalização destas pessoas esteja em curso em alguns estados, o sucesso do controle da porta de entrada do manicômio judiciário é ainda eventual e não existem ainda medidas para realizar uma redução programada de leitos/vagas. No entanto, ainda que embrionária, a nova prática nestes estados já começa a construir o espaço para o louco infrator nas ações do Sistema Único de Saúde, inclusive no Programa de Volta para Casa.
Trata-se de um passo fundamental sobretudo para a luta pela garantia à assistência, à saúde pública e de qualidade e à proteção aos Direitos Humanos de um grupo social que há séculos é vítima de exclusão e preconceito.

Redução de leitos: cenários possíveis de médio e longo prazo

Estima-se que, até o final de 2006, os 6 macro-hospitais remanescentes tenham todos  reduzido significativamente seu leitos, para menos que 600 leitos. A redução global  estimada é da ordem de 2.500 a 3.000 leitos ao ano, sempre dos maiores para os menores hospitais. Assim, pode projetar-se um cenário de menos de 30.000 leitos psiquiátricos convencionais, no total do país, para os próximos 4 anos. É preciso, entretanto, ampliar o número de leitos psiquiátricos em hospitais gerais (atualmente, 2.100 leitos), em unidades pequenas, de no máximo 15 leitos, especialmente destinados ao atendimento de transtornos pelo uso de álcool e outras drogas.
Um problema a ser resolvido é a lenta implantação dos serviços CAPS III, que funcionam 24 horas e realizam internações de curtíssima duração, e ainda não existem em todos os municípios acima de 200.000 habitantes, como é desejável. Com a mudança do modelo assistencial, o Ministério da Saúde está substituindo o indicador “leitos psiquiátricos por 1.000 habitantes” pelo indicador mais sensível e eficaz de “leitos de atenção integral em saúde mental (LAI-SM) por 1.000 habitantes”, no qual estão incorporados, além dos leitos de hospital psiquiátrico, aqueles disponíveis em hospitais gerais, unidades de referência para álcool e outras drogas, emergências gerais e CAPS III.
Alguns municípios de médio e grande porte que estão resolvendo muito satisfatoriamente a questão da internação em psiquiatria e a efetividade da rede extra-hospitalar (como Campinas, Santos e Santo André, em São Paulo; Betim, em Minas Gerais, Sobral, no Ceará e Pelotas, no Rio Grande do Sul), têm funcionado bem com cobertura de 0.18 a 0.25 leitos por 1.000 habitantes, o que mostra uma real substituição do modelo hospitalocêntrico.  O maior problema, sem dúvida, está nos grandes municípios, com população acima de 500.000 habitantes (0,63% das cidades brasileiras), onde o papel do sistema de emergência (SAMU-192) é essencial.
Fonte: MInistério da Saúde (2005)
 
Em breve vou postar algo mais ameno... 
Tenham uma boa leitura e quaisquer dúvidas, reclamações e/ou sugestões é só deixar um comentário... 
Abraço.
Roges

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Reforma Psiquiátrica no Brasil - Parte 1

Olá pessoal!   Estive desligado por um bom tempo (novamente), pois estava atrás de uns documentos relativos ao meu mestrado...Bueno, vamos em frente no assunto que tinha planejado falar antes do tema sobre transtorno de pânico.
Como se sabe, a reforma psiquiátrica no Brasil de certa forma é um tanto complexa, uma vez que ela surge inicialmente na crítiuca ao modelo hospitalocêntrico. Provavelmente farei mais de um post, para que fique bem fácil a compreensão do tema, uma vez que o início do processo de Reforma Psiquiátrica no Brasil é contemporâneo da eclosão do "movimento sanitário", nos anos 70, em favor da mudança dos modelos de atenção e gestão nas práticas de saúde, defesa da saúde coletiva, eqüidade na oferta dos serviços, e protagonismo dos trabalhadores e usuários dos serviços de saúde nos processos de gestão e produção de tecnologias de cuidado.
Embora contemporâneo da Reforma Sanitária, o processo de Reforma Psiquiátrica brasileira tem uma história própria, inscrita num contexto internacional de mudanças pela superação da violência asilar. Fundado, ao final dos anos 70, na crise do modelo de assistência centrado no hospital psiquiátrico, por um lado, e na eclosão, por outro, dos esforços dos movimentos sociais pelos direitos dos pacientes psiquiátricos, o processo da Reforma Psiquiátrica brasileira é maior do que a sanção de novas leis e normas e maior do que o conjunto de mudanças nas políticas governamentais e nos serviços de saúde.A Reforma Psiquiátrica é processo político e social complexo, composto de atores, instituições e forças de diferentes origens, e que incide em territórios diversos, nos governos federal, estadual e municipal, nas universidades, no mercado dos serviços de saúde, nos conselhos profissionais, nas associações de pessoas com transtornos mentais e de seus familiares, nos movimentos sociais, e nos territórios do imaginário social e da opinião pública. Compreendida como um conjunto de transformações de práticas, saberes, valores culturais e sociais, é no cotidiano da vida das instituições, dos serviços e das relações interpessoais que o processo da Reforma Psiquiátrica avança, marcado por impasses, tensões, conflitos e desafios. Nas páginas seguintes, fazemos o esforço de descrição dos principais componentes da história da Reforma Psiquiátrica no Brasil, com destaque para o processo de delineamento progressivo da política de saúde mental do Ministério da Saúde, alinhada com os princípios da Reforma. 
Histórico da Reforma: (I) crítica do modelo hospitalocêntrico (1978-1991)
O ano de 1978 costuma ser identificado como o de início efetivo do movimento social pelos direitos dos pacientes psiquiátricos em nosso país. O Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM), movimento plural formado por trabalhadores integrantes do movimento sanitário, associações de familiares, sindicalistas, membros de associações de profissionais e pessoas com longo histórico de internações psiquiátricas, surge neste ano. É sobretudo este Movimento, através de variados campos de luta, que passa a protagonizar e a construir a partir deste período a denúncia da violência dos manicômios, da mercantilização da loucura, da hegemonia de uma rede privada de assistência e a construir coletivamente uma crítica ao chamado saber psiquiátrico e ao modelo hospitalocêntrico na assistência às pessoas com transtornos mentais. A experiência italiana de desinstitucionalização em psiquiatria e sua crítica radical ao manicômio é inspiradora, e revela a possibilidade de ruptura com os antigos paradigmas, como, por exemplo, na Colônia Juliano Moreira, enorme asilo com mais de 2.000 internos no início dos anos 80, no Rio de Janeiro. Passam a surgir as primeiras propostas e ações para a reorientação da assistência. O II Congresso Nacional do MTSM (Bauru, SP), em 1987, adota o lema “Por uma sociedade sem manicômios”. Neste mesmo ano, é realizada a I Conferência Nacional de Saúde Mental (Rio de Janeiro). Neste período, são de especial importância o surgimento do primeiro CAPS no Brasil, na cidade de São Paulo, em 1987, e o início de um processo de intervenção, em 1989, da Secretaria Municipal de Saúde de Santos (SP) em um hospital psiquiátrico, a Casa de Saúde Anchieta, local de maus-tratos e mortes de pacientes. É esta intervenção, com repercussão nacional, que demonstrou de forma inequívoca a possibilidade de construção de uma rede de cuidados efetivamente substitutiva ao hospital psiquiátrico. Neste período, são implantados no município de Santos Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS) que funcionam 24 horas, são criadas cooperativas, residências para os egressos do hospital e associações. A experiência do município de Santos passa a ser um marco no processo de Reforma Psiquiátrica brasileira. Trata-se da primeira demonstração, com grande repercussão, de que a Reforma Psiquiátrica, não sendo apenas uma retórica, era possível e exeqüível. Também no ano de 1989, dá entrada no Congresso Nacional o Projeto de Lei do deputado Paulo Delgado (PT/MG), que propõe a regulamentação dos direitos da pessoa com transtornos mentais e a extinção progressiva dos manicômios no país. É o início das lutas do movimento da   Reforma Psiquiátrica nos campos legislativo e normativo. Com a Constituição de 1988, é criado o SUS – Sistema Único de Saúde, formado pela articulação entre as gestões federal, estadual e municipal, sob o poder de controle social, exercido através dos “Conselhos Comunitários de Saúde”.
Histórico da Reforma: (II) começa a implantação da rede extra-hospitalar (1992-2000)
A partir do ano de 1992, os movimentos sociais, inspirados pelo Projeto de Lei Paulo Delgado, conseguem aprovar em vários estados brasileiros as primeiras leis que determinam a substituição progressiva dos leitos psiquiátricos por uma rede integrada de atenção à saúde mental. É a partir deste período que a política do Ministério da Saúde para a saúde mental, acompanhando as diretrizes em construção da Reforma Psiquiátrica, começa a ganhar contornos mais definidos. É na década de 90, marcada pelo compromisso firmado pelo Brasil na assinatura da Declaração de Caracas e pela realização da II Conferência Nacional de Saúde Mental, que passam a entrar em vigor no país as primeiras normas federais regulamentando a implantação de serviços de atenção diária, fundadas nas experiências dos primeiros CAPS, NAPS e Hospitais-dia, e as primeiras normas para fiscalização e classificação dos hospitais psiquiátricos. Neste período, o processo de expansão dos CAPS e NAPS é descontínuo. As novas normatizações do Ministério da Saúde de 1992, embora regulamentassem os novos serviços de atenção diária, não instituíam uma linha específica de financiamento para os CAPS e NAPS. Do mesmo modo, as normas para fiscalização e classificação dos hospitais psiquiátricos não previam mecanismos sistemáticos para a redução de leitos. Ao final deste período, o país tem em funcionamento 208 CAPS, mas cerca de 93% dos recursos do Ministério da Saúde para a Saúde Mental ainda são destinados aos hospitais psiquiátricos.
A Reforma Psiquiátrica depois da lei Nacional (2001 -2005)
É somente no ano de 2001, após 12 anos de tramitação no Congresso Nacional, que a Lei Paulo Delgado é sancionada no país. A aprovação, no entanto, é de um  substitutivo do Projeto de Lei original, que traz modificações importantes no texto normativo. Assim, a Lei Federal 10.216 redireciona a assistência em saúde mental, privilegiando o oferecimento de tratamento em serviços de base comunitária, dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas com transtornos mentais, mas não institui mecanismos claros para a progressiva extinção dos manicômios. Ainda assim, a promulgação da lei 10.216 impõe novo impulso e novo ritmo para o processo de Reforma Psiquiátrica no Brasil. É no contexto da promulgação da lei 10.216 e da realização da III Conferência Nacional de Saúde Mental, que a política de saúde mental do governo federal, alinhada com as diretrizes da Reforma Psiquiátrica, passa a consolidar-se, ganhando maior sustentação e visibilidade. Linhas específicas de financiamento são criadas pelo Ministério da Saúde para os serviços abertos e substitutivos ao hospital psiquiátrico e novos mecanismos são criados para a fiscalização, gestão e redução programada de leitos psiquiátricos no país. A partir deste ponto, a rede de atenção diária à saúde mental experimenta uma importante expansão, passando a alcançar regiões de grande tradição hospitalar, onde a assistência comunitária em saúde mental era praticamente in existente. Neste mesmo período, o processo de desinstitucionalização de pessoas longamente internadas é impulsionado, com a criação do Programa “De Volta para Casa”. Uma política de r ecursos humanos para a Reforma Psiquiátrica é construída, e é traçada a política para a questão do álcool e de outras drogas, incorporando a estratégia de redução de danos. Realiza-se, em 2004, o primeiro Congresso Brasileiro de Centros de Atenção Psicossocial, em São Paulo, reunindo dois mil trabalhadores e usuários de CAPS. Este processo caracteriza-se por ações dos governos federal, estadual, municipal e dos movimentos sociais, para efetivar a construção da transição de um modelo de assistência centrado no hospital psiquiátrico, para um modelo de atenção comunitário. O período atual caracteriza-se assim por dois movimentos simultâneos : a construção de uma rede de atenção à saúde mental substitutiva ao modelo centrado na internação hospitalar, por um lado, e a fiscalização e redução progressiva e programada dos leitos psiquiátricos existentes, por outro. É neste período que a Reforma Psiquiátrica se consolida como política oficial do governo federal. Existem em funcionamento hoje no país 689 Centros de Atenção Psicossocial e, ao final de 2004, os recursos gastos com os hospitais psiquiátricos passam a representar cerca de 64% do total dos recursos do Ministério da Saúde para a saúde mental.
Fonte: Ministério da Saúde - Reforma Psiquiátrica e política de saúde mental no Brasil (2005)
No próximo post segue o tema com o processo de desistitucionalização.
Um abraço.
Roges

quarta-feira, 30 de junho de 2010

As sequelas da violência

Oi pessoal!
Eu tinha planejado falar sobre a reforma psiquiátrica no Brasil neste post, mas por forças maiores resolvi elaborar um texto diferente.
Tive uma experiência bem marcante poucos dias atrás: fui assaltado e sequestrado. Confesso que no momento da abordagem a primeira coisa que pensei foi: "não, eu não estou sendo assaltado". Parecia que a coisa não era comigo e que era uma pegadinha....mas não era, pior, não foi...
Fui ameaçado com uma arma na minha cabeça e obviamente pensando nas piores coisas que poderiam me acontecer e à pessoa que estava comigo nesta aventura nada planejada e tampouco desejada.
E aí eu pergunto: como fica a cabeça daqueles que sofrem com a violência alheia???
Não é de se admirar que pessoas que sofram atos de violência, nestes casos gratuita, não queiram mais sair de casa, adquiram um comportamento receoso e entrem em situação de pânico. É o Transtorno de Estresse Pós Traumático, ou a famosa Neurose de Guerra como dizem os especialistas.  
O transtorno de estresse pós-traumático pode ser entendido como a perturbação psíquica decorrente e relacionada a um evento fortemente ameaçador ao próprio paciente ou sendo este apenas testemunha da tragédia. O transtorno consiste num tipo de recordação que é melhor definido como revivescência pois é muito mais forte que uma simples recordação. Na revivescência além de recordar as imagens o paciente sente como se estivesse vivendo novamente a tragédia com todo o sofrimento que ela causou originalmente. O transtorno então é a recorrência do sofrimento original de um trauma, que além do próprio sofrimento é desencadeante também de alterações neurofisiológicas e mentais.
Como a violência urbana e a agressão interpessoal constituem ameaça à vida, à integridade física e à sensação de segurança das pessoas de forma cotidiana, a resposta emocional das pessoas sob a forma de Transtorno por Estresse Pós-Traumático começa a se tornar uma ocorrência freqüente. Trata-se dos transtornos emocionais desencadeados pelo esforço adaptativo do indivíduo ao seu meio e, quanto mais hostil for esse meio, maiores as probabilidades de transtornos emocionais. 
A idéia do Transtorno por Estresse Pós-Traumático é um conceito desenvolvido a partir de 1980, nas classificações internacionais (CID.10 e DSM.IV), que permitiu unificar uma série de categorias de transtornos emocionais reativos a acontecimentos traumáticos anteriormente dispersos na classificação psiquiátrica.
No século XIX, entretanto, diversos psiquiatras e neurologistas já reconheciam os sintomas característicos do atual Transtorno por Estresse Pós-Traumático, incluindo o quadro dentro da neurose histérica ou de conversão. Depois da Segunda Guerra Mundial ressurgiu o interesse pelas manifestações clínicas desta síndrome, a qual passou a ser conhecida como “neurose traumática ou de guerra”. Portanto, o quadro que antigamente era conhecido por Neurose de Guerra, ressurge hoje nos grandes centros urbanos como uma resposta do cidadão comum às agressões que a sociedade moderna o submete.
Qualquer pessoa pode desenvolver estresse pós-traumático, desde uma criança até um ancião. Os sintomas não surgem necessariamente logo após o evento, podem levar meses. O intervalo mais comum entre evento traumatizante e o início dos sintomas são três meses. Muitas pessoas se recuperam dos sintomas em seis meses aproximadamente, outras podem ficar com os sintomas durante anos.  
Os tratamentos preconizados ainda não são plenamente satisfatórios ou estão em início de investigação. Além da intervenção terapêutica, necessária para que a pessoa possa reorganizar seu padrão de funcionamento e continuar seu processo de vida de modo mais saudável, a única medicação autorizada oficialmente para tratamento do estresses pós-traumático nos EUA era a sertralina, que continua sendo indicada. Uma medicação talvez mais eficaz que a sertralina é o topiramato. As primeiras investigações com ele mostraram uma resposta altamente satisfatória.
Conforme podemos ver, não são poucas as consequências que a violência nos impõe quando analisamos nossa saúde psíquica. Embora tais atos sejam deflagrados sem nenhum  tipo de violação física, é inevitável que qualquer conduta violenta ocorra sem que fiquemos ilesos.
Um abraço e até a próxima.
Roges

quarta-feira, 9 de junho de 2010

O Cinema e a Imagem Social da Saúde Mental

Bueno amigos...
  Depois de passados exatamente 30 dias sem postagem alguma, retorno com um assunto que achei interessante: as representações da saúde mental no cinema.
  O olhar insistente do cinema para os "distúrbios psíquicos" deve-se ao fato de que esses distúrbios têm repercussão profunda nas pessoas, assim como a violência. Os distúrbios mentais mostrados na tela remetem àquele fundo patológico, de loucura ou de alteração, que está presente em todos nós.
  No cinema de Hollywood, por exemplo, há obras em que os distúrbios psíquicos, os transtornos mentais e a loucura servem como fio condutor da narrativa. Nessa direção, encontramos obras expressivas, como Psicose (Hitchcock, 1960), Um estranho no ninho (Milos Forman, 1965), O expresso da meia noite (Alan Parker 1978), O silêncio dos Inocentes (Jonathan Demme, 1991).  Entre tantos outros, são filmes que nos apresentam personagens psicóticos, estranhos, literalmente fora da casinha e portanto, levam o espectador a formar uma certa imagem da doença mental e da loucura. Entretanto, observando-os de maneira mais detida entendemos que tais filmes tratam de modalidades de inconformismo, resistência e negação do suposto estilo de normalidade, proposto pelas regras sociais. Na perspectiva de um olhar clínico, acredita-se que estas obras podem instigar uma reflexão mais lúcida acerca das diversas patologias mentais.
  No cinema nacional, por sua vez,  alguns filmes tratam do tema da saúde mental e distúrbios psiquiátricos, e entende-se que, principalmente nos trabalhos da década de 60/70, há uma produção importante, competente na decifração dos distúrbios sociais desencadeando a loucura individual, durante a ditadura militar. Um exemplo nessa direção é o filme Matou a família e foi ao cinema (Júlio Bressane,1969), que mostra uma sociedade com valores em transformação, em que se percebem modificações no domínio da ética, da moral, do comportamento, da linguagem e também da maneira como é tratada a loucura.
  Com esta temática, o filme Azylo muito louco (Nelson Pereira dos Santos, 1969/70), adaptação do romance O alienista, de Machado de Assis, que serve, sobretudo, como uma grande metáfora para a atmosfera caótica dos anos 70. A narrativa de O alienista, especificamente, é importante porque demonstra a fina ironia de Machado de Assis a respeito da maneira como a loucura é vista, no século XIX, pelas classes sociais e principalmente pelo olhar da medicina, marcada pelo espírito positivista regendo o conhecimento científico. Ou seja, mostra como a construção do saber sobre a loucura se instituiu a partir do discurso autoritário do médico, da classe dominante. Por este viés, percebe-se igualmente como ocorre o nascimento da clínica, como se processam as internações, de maneira arbitrária e a partir de critérios pouco confiáveis.
  De um modo  mais abrangente, os audiovisuais, o cinema, as telenovelas, as minisséries, etc, vão sinalizando
novas perspectivas, novos olhares sobre o problema da saúde mental, da loucura e das diversas  possibilidades terapêuticas. Numa perspectiva clínica, o filme nacional que talvez represente com mais propriedade o tema da loucura é Bicho de Sete Cabeças (Lais Bodanzky, 2000), em que um jovem
(Rodrigo Santoro) é internado pela família, contra a sua vontade, no manicômio, algo que hoje é proibido pela Legislação Federal.
  Bom pessoal, espero que tenham gostado do assunto de hoje. No próximo post "Reforma Psiquiátrica no Brasil".
Um grande abraço e até breve.
Roges